Vergonha | 7º dia
Manhã cedo no mercado a comprar pão. Pão de sementes para mim, pão branco para eles. O Gustavo troca-me às voltas e quer o pão de sementes. Sempre assim. Comprei legumes frescos para a sopa da Francisca. E para a sopa do resto da família. Adoro o cheiro do mercado e do mar pela manhã. Adoro ver pessoas sorridentes pela manhã. Com o mês de Julho chegaram mais pessoas a Pedrógão. E o calor. Fui ao café Gente Gira, fiz uns snaps (as saudades que eu já tinha de falar com a minha cara a olhar de esguelha) enquanto bebi um café. Lá se meteram com a Francisca, não há um dia que não se metam com ela. "Quanto tempo tem? Tão fofa, tão gira. Pesinhos tão gordinhos. Parece a Sofia". Dizem sempre isto no café. A Sofia é a neta dos donos do café. Nunca a vi. Depois de almoço fomos até à Lagoa da Ervedeira. Não conhecia. Só tinha visto fotos na internet. É um sítio muito bonito. Natureza pura, ar puro. Estavam imensas pessoas a fazer almoço no parque das merendas. Sem burro, fomos com a tralha toda até à Lagoa. O Zé pergunta quantas pessoas conhecemos capazes de fazer isto. Eu respondo que toda a gente no mundo consegue, mas nem toda a gente se dá ao trabalho. Quando fui beber café com o Gustavo encontrámos um mini campo de futebol com balizas pequeninas. Tinha também um parque para os miúdos bem catita. Ele comeu um Epá. Acho que foi a segunda vez na vida que comeu um Epá. A primeira vez foi no jardim de Vila Franca de Xira e sujou-se todo. O Gustavo encontrou uma bola perdida ao pé da baliza. Quis ficar com a bola. Eu disse-lhe que não podia porque não era dele. Ele não quis saber. Para virmos embora teve de trazer a bola. Eu levei a bola dele, ele levou a bola do outro. Eu já não aguentava os gritos do miúdo quando lhe disse para deixar a bola do outro. Às vezes, faço isto. Não roubo bolas, mas deixo-o fazer o que ele quer só para não o ouvir. Sei que não é o mais correcto, mas teoria é teoria. Quero ver na prática. Quando chegámos à toalha o Zé ralhou comigo porque trouxe uma bola que não era nossa. Quando formos embora vamos lá entregar, disse-me. Pronto, está bem. É só uma bola. Também roubaram a bola dele na outra praia. Enquanto falávamos no assunto, apareceu um homem chateado que perguntou ao Gustavo: onde é que está o teu pai? O Zé todo aflito: sou eu. O homem: esta bola é do meu filho. E agarrou na bola. O Gustavo começou logo com o berreiro. Fui buscar a bola dele e expliquei ao homem que só tinha trazido porque ele não se calava. O Zé disse logo umas seis vezes seguidas: por acaso íamos devolver quando fossemos embora. Claro que ninguém acredita nisto. O homem disse que entendia porque o filho dele era igual. Convidou o Gustavo para ir jogar à bola com o filho. Eles foram, eu fiquei com a Francisca. O Zé disse que ele acreditou, que lhe ofereceu um copo de cerveja e tudo. Sim sim. O Zé estava envergonhado com a situação. Eu continuo a pensar: é só uma bola! Adiante. O Zé foi mergulhar na Lagoa. Eu fiquei a olhar. Não molhei as unhas sequer. Estava muita gente. O meu fio dental era demasiado escandaloso para aquelas pessoas. Arrependi-me logo da escolha. Também li o livro do Joel Neto. Ele escreve muito bem, mas a narrativa não é nada fluida. Todas as pessoas que passaram por nós se metiam com a Francisca. Diziam: oh que bebé tão pequenina, oh que bebé tão fofo. Nunca trataram por menino ou menino. Tinha medo de errar. O Zé reparou nisso também e perguntou se ela tinha cara de rapaz. Eu acho que tem. Sei lá. Não se nota bem. Depois mais uma guerra para irmos embora. É sempre assim. O Gustavo nunca quer ir embora para casa. Sejam as horas que forem. Qualquer dia deixo de ir seja a onde for. Perco sempre três quilos com estas guerras. A Francisca já começa a gostar mais do carro, agora que perdeu mais aquele cheiro a novo. Não sei. Fomos comprar o jantar. Eles adormeceram na viagem. Depois tivemos de os acordar para os levar para casa. Ohhh. Aquelas coisas habituais, comer e banhos. O Gustavo toma sempre banho comigo. Gosta de me lavar a cabeça. E mandar-me água para a cara. Tom & Jerry pela décima terceira vez. Já estou fartinha. Já conheço as músicas. Li mais um bocado. Também tentei ouvir umas notícias mas o Gustavo não deixou. Só queria brincar à luta das almofadas. Desisti. Vim para o quarto. Está muito silêncio nesta casa. Estou de coração cheio. E não me apetece falar em coisas menos boas. A vida é mara! Vou comer.