Conto da menina má
Juro que olhei para a esquerda e para a direita antes de atravessar a estrada. Fiz tudo o que meu pai me ensinara antes de morrer, devia ter sete anos. Não me esqueço desse dia apesar de não saber que idade tinha. A minha casa ficava num pátio, para entrar no pátio era preciso passar o portão grande de ferro enferrujado. Mesmo em frente ficava uma estrada com algum movimento. Normalmente, brincava com a minha irmã no pátio enquanto o meu pai não chegava do trabalho ou a minha mãe não nos chamava para jantar. Naquele dia estava com saudades do meu pai. Sem motivos, tinha saudades. Esperei por ele a tarde inteira, quando o vi estacionar a mota do outro lado da estrada acompanhado de familiares a minha intuição foi correr para os seus braços. Cheia de vontade de um abraço. Uma criança a correr com um sorriso e os seus cabelos ao vento, sou eu numa imagem. Em câmara lenta, consigo ver o meu cabelo solto e a poeira levantada atrás de mim. Quando cheguei ao outro lado recebi um pontapé forte. Tão forte, ainda hoje me dói sem sentir. O meu pai agarrou-me por um braço e sacudiu-me enquanto gritava palavrões. “NÃO VOLTAS A ATRAVESSAR A ESTRADA SEM OLHAR PARA UM LADO E PARA O OUTRO, OUVISTE BEM?”. Era impossível não ouvir, era impossível que o Mundo inteiro não tivesse ouvido e não estivesse de boca aberta. Lembro-me de chorar, de ficar desiludida porque acabei com a minha própria felicidade naquele dia. Sempre inimiga de mim mesma. Não fazia nada certo, não era capaz de ser uma menina comportada. Pobre pai. Pobre de mim que fiquei sem o abraço dele.
Esta tarde, fui a uma feira onde vendem livros antigos e cheio de poeira. O meu vendedor preferido bebe café numa caneca de barro e fuma cachimbo. Tem um bigode farfalhudo, percebe de livros mas não percebe nada de trocos. Comprei uma colecção antiga, cheia de detalhes e imagens a preto e branco. Meteu tudo num saco de plástico e disse-me para voltar no próximo fim-de-semana. O saco era frágil e rasgou assim que o coloquei na mão. Abracei os livros de forma a não os deixar cair, dei adeus ao vendedor e virei as costas. Fui atropelada quando atravessei a estrada. Um autocarro veio em minha direcção com muita velocidade. Os livros voaram, páginas soltas pela rua voando sob a minha cabeça. Os rostos das pessoas ficaram desfigurados, o meu também. O vento conseguiu tornar tudo num espectáculo dramático. Letras espalmadas no chão. O meu pai tinha razão, não era uma boa menina e acabava por morrer assim.